sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A nascente do rio



O Jardim Romano é um bairro do extremo leste da cidade de São Paulo que há cerca de dez anos sofre com alagamentos decorrentes de enchentes. No ano passado, o bairro ficou três meses debaixo d´água com aquela que seria a maior enchente que o Romano já teria vivido. Nasce na memória social do bairro, a partir do contato de um grupo de artistas de diversas linguagens com a comunidade, a idéia de um projeto de montagem de uma instalação visual e performances que reverberem e espelhem essa memória através da poesia. A prática artística dos artistas, junto às crianças da comunidade, transbordou as paredes do CEU Três Pontes onde a referida prática se desenvolve, (re)conhecendo no contato com a comunidade a poesia que estava atrelada a cada narrativa que era (re)contada. Os moradores revelaram-se em suas narrativas como heróis do cotidiano que viram na sua jornada diária de travessia das águas uma metáfora da própria existência. Pequenas histórias que relatam o espírito de comunidade e comunhão de uma sociedade que parece ter reconhecido na profundidade das águas que violentaram suas vidas, uma forma de resistir a um tempo em que a obsessão pela velocidade e mobilidade ditam as relações humanas, gerando no convívio social de uma grande metrópole como São Paulo o esquartejamento do espírito social. O Romano é um marco de resistência. Na profundidade do rio, corre os devaneios e os “devires” do homem que resistiu e sobreviveu às tempestades. Segundo Bachelard, em seu livro A água e os sonhos, “no tocante ao (meu) devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade”, e as profundezas de cada rio-narrativa tornaram-se um exercício de imersão poética diante da própria vida e morte.
A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas, a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. (BACHELARD, 1997)
Nos doces fantasmas da água está ligada uma imaginação que quer divertir-se apesar de todas as dores, desilusões e descaso. As histórias contadas são repletas de dor, revolta, indignação, mas de muita alegria e contentamento pelo poder de superação. A imagem de Narciso que reflete na água, não espelha só a sua beleza, mas a própria imagem contempla tudo a sua volta, quase como um Narcisismo Cósmico, fazendo-se ela própria, a imagem, um catalisador da beleza em sua volta, nos diz Bachelard. O cosmos, é de certa maneira, tocado de narcisismo. O mundo quer se ver. O Romano quer ser visto, além das lentes da mídia que espetacularizou a desgraça e transformou o cidadão em vítima frágil e, muitas vezes, resignada diante de sua condição. Não! No Jardim do leste paulista, os cidadãos arregaçaram as mangas, uniram-se, nutriram-se de coragem, reconheceram-se no outro através do rio: Ainda bem que o povo é solidário né? Era um ajudando o outro, ajudava numa casa, aí “vamo na casa de fulano, que lá já tá pegando nas coisas”, aí corria aquela tropa de gente e ia pra outra casa ajudar, quando tava lá terminando, pensava que não chegava outro “vamo na casa de fulano que as coisas tá moiando”. [...] Aí o paredão do trem estourou, aí veio água com vontade minha filha. A rua era que nem rio[...] Eu só lembrava do tsunami. [...] Eu me lembrava era do Haiti, eu digo lá no Haiti foi com coisa, né? Um tremor que destruiu tudo, era terra, entulho; e aqui é com água. (Trecho transcrito da entrevista realizada com Francisca, moradora do bairro).O projeto encontra nessas jornadas heróicas a poesia necessária para a construção de um fazer artístico que visa o transbordamento das fronteiras das artes visuais com a realidade social reunindo em sua prática artistas e moradores na construção visual de grafites- tatuagens nas paredes das casas do bairro, derivados das narrativas recolhidas, entendendo arte pública como um território fértil para fazer arte comprometida a poética visual da própria vida. O mundo quer ser visto. O grafite é utilizado para refletir tudo isso, um espelho de água que permite ser atravessado. A ninfa eco é o próprio Narciso, murmurando-lhe a vida, a morte e o renascimento. Foi desse murmúrio da ninfa presente na fala de cada morador que se descobriu a nascente do rio.