Nascente do Rio

DAQUI A POUCO O PEIXE PULA é um projeto de criação, memória e narrativa que tem na memória social do Jardim Romano o território poético de atuação. O Jardim Romano é um bairro do extremo leste paulistano que ficou debaixo d´água durante três meses no ano de 2010. Nasce das narrativas dos moradores a ideia de um projeto que trasnforma em experiência estética tais relatos. A jornada heróica dos moradores estão sendo transformadas em experiência estética, a partir de depoimentos recolhidos em video. O projeto foi contemplado pelo PROAC de Artes Visuais e PROAC de primeira obra em artes cênicas. No projeto das Artes Visuais o projeto consiste em grafitar dez depoimentos dos moradores nas paredes do bairro, através da arte de Ignoto (grafiteiro do Romano). As paredes do Romano transformadas em páginas de um livro. O grafite ilustrando as narrativas. Esse processo será documentado, transformado em livro, e todo o registro, gerará uma instalação que irá revelar todo o processo de criação. No projeto com os moradores- atores sociais, contemplado pelo Proac de Artes Cênicas, estas histórias serão performadas nas ruas do Romano pelo Grupo de Teatro Geração da Arte. Por último, através do Programa VAI, da Prefeitura Muncipal de São Paulo, oficinas de criação (perna de pau, musicalização, memória e narrativa e grafite) ampliará o campo de moradores atuantes no projeto a poetizar a memória do bairro.






O Jardim Romano é um bairro do extremo leste da cidade de São Paulo que há cerca de dez anos sofre com alagamentos decorrentes de enchentes. No ano passado, o bairro ficou três meses debaixo d´água com aquela que seria a maior enchente que o Romano já teria vivido. Nasce na memória social do bairro, a partir do contato de um grupo de artistas de diversas linguagens com a comunidade, a idéia de um projeto de montagem de uma instalação visual e performances que reverberem e espelhem essa memória através da poesia. A prática artística dos artistas, junto às crianças da comunidade, transbordou as paredes do CEU Três Pontes onde a referida prática se desenvolve, (re)conhecendo no contato com a comunidade a poesia que estava atrelada a cada narrativa que era (re)contada. Os moradores revelaram-se em suas narrativas como heróis do cotidiano que viram na sua jornada diária de travessia das águas uma metáfora da própria existência. Pequenas histórias que relatam o espírito de comunidade e comunhão de uma sociedade que parece ter reconhecido na profundidade das águas que violentaram suas vidas, uma forma de resistir a um tempo em que a obsessão pela velocidade e mobilidade ditam as relações humanas, gerando no convívio social de uma grande metrópole como São Paulo o esquartejamento do espírito social. O Romano é um marco de resistência. Na profundidade do rio, corre os devaneios e os “devires” do homem que resistiu e sobreviveu às tempestades. Segundo Bachelard, em seu livro A água e os sonhos, “no tocante ao (meu) devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade”, e as profundezas de cada rio-narrativa tornaram-se um exercício de imersão poética diante da própria vida e morte.
A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas, a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. (BACHELARD, 1997)
Nos doces fantasmas da água está ligada uma imaginação que quer divertir-se apesar de todas as dores, desilusões e descaso. As histórias contadas são repletas de dor, revolta, indignação, mas de muita alegria e contentamento pelo poder de superação. A imagem de Narciso que reflete na água, não espelha só a sua beleza, mas a própria imagem contempla tudo a sua volta, quase como um Narcisismo Cósmico, fazendo-se ela própria, a imagem, um catalisador da beleza em sua volta, nos diz Bachelard. O cosmos, é de certa maneira, tocado de narcisismo. O mundo quer se ver. O Romano quer ser visto, além das lentes da mídia que espetacularizou a desgraça e transformou o cidadão em vítima frágil e, muitas vezes, resignada diante de sua condição. Não! No Jardim do leste paulista, os cidadãos arregaçaram as mangas, uniram-se, nutriram-se de coragem, reconheceram-se no outro através do rio: Ainda bem que o povo é solidário né? Era um ajudando o outro, ajudava numa casa, aí “vamo na casa de fulano, que lá já tá pegando nas coisas”, aí corria aquela tropa de gente e ia pra outra casa ajudar, quando tava lá terminando, pensava que não chegava outro “vamo na casa de fulano que as coisas tá moiando”. [...] Aí o paredão do trem estourou, aí veio água com vontade minha filha. A rua era que nem rio[...] Eu só lembrava do tsunami. [...] Eu me lembrava era do Haiti, eu digo lá no Haiti foi com coisa, né? Um tremor que destruiu tudo, era terra, entulho; e aqui é com água. (Trecho transcrito da entrevista realizada com Francisca, moradora do bairro).O projeto encontra nessas jornadas heróicas a poesia necessária para a construção de um fazer artístico que visa o transbordamento das fronteiras das artes visuais com a realidade social reunindo em sua prática artistas e moradores na construção visual de grafites- tatuagens nas paredes das casas do bairro, derivados das narrativas recolhidas, entendendo arte pública como um território fértil para fazer arte comprometida a poética visual da própria vida. O mundo quer ser visto. O grafite é utilizado para refletir tudo isso, um espelho de água que permite ser atravessado. A ninfa eco é o próprio Narciso, murmurando-lhe a vida, a morte e o renascimento. Foi desse murmúrio da ninfa presente na fala de cada morador que se descobriu a nascente do rio.

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